top of page
Blog: Blog2

Frida Kahlo: orgulho de ser latina, feminista e bissexual

  • Foto do escritor: Thuany Santana
    Thuany Santana
  • 24 de out. de 2019
  • 9 min de leitura


Esses dias eu tive uma grata surpresa ao ver que Frida – o filme sobre a vida da pintora Frida Kahlo, com a sempre maravilhosa Salma Hayek – está disponível na Netflix. Você também pode encontrar online. Mesmo para quem já conhece a história da Frida vale a pena assistir: o filme é belíssimo, a direção de arte é uma atração a parte. Aproveito pra recomendar alguns livros sobre ela, incluindo o Frida Kahlo para meninas e meninos, que faz parte da Coleção Antiprincesas. E por último um video bem legal, que traz fatos interessantes a respeito da artista mexicana.


ree

Imagem de divulgação da exposição Frida Kahlo: Making herself up (Fonte)

Tem muito conteúdo bacana sobre ela na web. Sem contar que nos últimos anos a Frida Kahlo virou febre, com seu rosto marcante e as icônicas sobrancelhas estampando uma série de produtos por aí. E sabe de uma coisa? Isso é ótimo! Ela foi uma pessoa incrível, muito à frente do seu tempo, além de ser uma pintora de imenso talento. É maravilhoso que até hoje a Frida seja inspiração para tanta gente.

Só que é fundamental conhecer a luta dela, né? Frida Kahlo foi uma mulher mexicana e tinha muito orgulho das suas tradições, suas origens latinas. Uma mulher bissexual, que falava abertamente sobre seu amor por outras mulheres e vivenciava a sua sexualidade com fervor. Uma feminista que fazia questão de desafiar o patriarcado dia após dia. Ela tinha deficiências físicas e conviveu com dores crônicas a maior parte da vida, algo que explorava em sua pintura. Não dá para ser fã da Frida e ignorar aspectos tão cruciais da sua trajetória, principalmente porque a arte dela sempre foi muito política.


Bissexualidade e padrões de gênero

Frida foi casada com o pintor Diego Rivera, e é verdade que os dois tinham uma relação conturbada. Apesar de ciumento, Rivera possuía várias amantes – incluindo a própria cunhada, irmã da esposa. Frida também tinha seus casos extraconjugais, com homens e mulheres. Ela e Diego atravessaram crises no casamento (que eventualmente terminou em divórcio), como a necessidade de fazer um aborto ilegal.

Muitas pessoas ficam surpresas ao conhecer esses detalhes da sua história. A gente se pergunta como é possível que uma mulher tão forte e decidida como Frida Kahlo tenha se submetido a um casamento disfuncional, que por vezes só trazia infelicidade? É uma dúvida válida, mas serve para nos lembrar que estar em uma relação problemática ou abusiva não é sinal de fraqueza. Existe uma série de fatores que levam alguém a entrar e permanecer nesse tipo de relacionamento , e é algo que pode acontecer com qualquer uma ou qualquer um. Seu casamento com Rivera, por mais que tenha sido complicado, não torna Frida Kahlo uma mulher menos incrível, nem diminui o seu valor.


ree

Frida e a cantora Chavela Vargas, que era lésbica, e de quem ela foi amante (Fonte)

Além de tudo, isso não desfaz a bissexualidade da pintora. Frida teve diversos casos e relacionamentos com outras mulheres ao longo da vida. Entre elas, a cantora mexicana Chavela Vargas e, supostamente, a também cantora e dançarina Josephine Baker. E só pra reforçar, pessoas que são bi (ou pan) não tem sua sexualidade apagada quando elas se casam ou começam um relacionamento – seja com um homem ou uma mulher. Frida Kahlo era sim uma mulher bissexual, e pode ser considerada um ícone LGBT.

Frida constantemente desafiava os padrões de gênero. Desde a adolescência, podemos encontrar registros dela usando roupas “masculinas”, como fotos de família e um auto-retrato em que ela se representa vestindo um terno. Ela ainda exibia orgulhosamente as características que a sociedade dizia pouco femininas, como as sobrancelhas grossas e cheias, os pelos no buço. Algo que seria transgressor mesmo nos dias de hoje, né? Na sociedade mexicana do século passado, tão machista, era uma forma de não se curvar ao padrão de beleza europeu e reafirmar a própria autonomia. E é incrível que, tantos anos depois, as atitudes dela estimulem mulheres e meninas a desafiar os estereótipos de gênero e esse conceito irreal de beleza que a gente reproduz até hoje.


ree

Frida Kahlo, adolescente, trajando um visual tido como masculino. No detalhe, vemos a pintora sozinha (Fonte) e em uma foto de família, com o braço sobre o ombro do pai (Fonte)

Orgulho de ser latina

Não dá para falar sobre como a Frida desafiava esses esterótipos sem mencionar a sua origem latina. Afinal, a estética dela era uma escolha consciente e revolucionária, que buscava valorizar a cultura mexicana. A identidade latina sempre foi um ponto central na sua obra, aparecendo tanto nas pinturas quanto nas suas vestimentas. É importante dizer que os traços físicos que ela exaltava – as sobrancelhas grossas, os pelos do corpo escuros, longos e abundantes, inclusive no buço – são traços étnicos associados a sua descendência mexicana (e outras etnias não-brancas, como povos árabes e indianos). O fato dessas características serem consideradas pouco atraentes e pouco femininas tem muito a ver com machismo, mas também tem muito a ver com o racismo. O padrão de beleza não é apenas misógino, ele é eurocêntrico e racista.

Batizada de Magdalena Carmen Frida Kahlo Calderón, Frida era na verdade filha de um alemão e uma mexicana, e usava o sobrenome do pai – Kahlo. Ou seja, ela mesma era o que a gente conhece por mestiza (em português, “mestiça”). Sem dúvida nenhuma, a sua herança europeia lhe conferia alguns privilégios, e confere até hoje. Vou levantar uma reflexão para vocês: será que ela seria tão exaltada como um ícone pop se tivesse a pele escura? Será que suas sobrancelhas ainda estariam “lançando moda”? A própria Frida tinha bastante consciência disso, dessa identidade dividida. No quadro Las dos Fridas, por exemplo, ela se retrata em duas figuras: uma é branca, com bigode e sobrancelhas atenuados e vestido europeu, enquanto a outra tem a pele ligeiramente mais escura, os pelos do rosto mais visíveis e usa trajes mexicanos (para ser mais específico, uma roupa tradicional Tehuana). A primeira figura ainda parece estar usando maquiagem, a julgar pela cor dos lábios, que sugere um batom.


ree

O quadro Las dos Fridas, onde ela explora sua identidade mestiça e dividia

Aqui a gente pode abrir um parênteses e falar sobre colorismo, sobre as pessoas latinas (ou negras) que “passam por brancas” – e sobre como isso promove um apagamento da identidade dessas pessoas. Colorismo não é um benefício, é um preconceito que vem disfarçado de privilégio. Quando Frida assume suas características latinas, quando ela faz questão de promover a arte e as tradições locais, quando ela adota uma estética que é visivelmente mexicana, ela está retomando sua identidade e se estabelecendo como mulher latina, mestiza, mexicana. Isso é empoderamento.

Contudo, eu acho fundamental a gente discutir a figura da Frida como uma ferramenta de apropriação cultural hoje em dia. Principalmente porque, como brasileiros, a gente ocupa um lugar interessante nessa discussão.

Em primeiro lugar, Frida Kahlo sempre foi bem crítica sobre as pessoas brancas que se apropriavam da estética dela, como os vestidos e penteados mexicanos. Em uma carta à amiga de infância Isabel Campos (que está no livro Cartas apaixonadas de Frida Kahlo, de Martha Zamora) ela expressa seu desgosto com as “gringas” (mulheres estrangeiras brancas) que tentavam imitar seu estilo e se vestir como mexicanas. Uma questão que se repente bastante até hoje! Até no próprio filme Frida, a Madonna queria interpretar a pintora mexicana. Chega a ser irônico, né?


ree

A atriz Salma Hayek, que é mexicana, como Frida Kahlo (Fonte)

Não que eu esteja comparando a possibilidade da Madonna interpretar a Frida (o que seria um enorme apagamento da identidade mexicana dela) com mulheres e meninas brasileiras que se inspiram na artista e no seu visual. Afinal, nós somos um povo latino – e, francamente, faria bem pro Brasil aprender a ter mais orgulho disso. Só que é preciso tratar essa identidade com respeito. É preciso ter consciência que a Frida representa a cultura mexicana. Não é apenas uma estética, não é apenas um acessório de moda, não é só um vestido colorido e umas flores na cabeça.

Quer um exemplo do que seria desrespeito, ao invés de admiração? Quando as pessoas (inclusive homens!) se vestem de Frida e pintam as sobrancelhas dela bem exageradas, de um jeito que fica óbvio que é uma chacota. Essas pessoas estão transformando um traço que ela usava pra exaltar sua herança mexicana em algo depreciativo, caricato. É uma atitude misógina e, como eu já disse, racista. Da mesma forma, se você se veste de Frida no carnaval, mas o resto do ano faz piada sobre meninas que tem a sobrancelha como a dela, ou que não se depilam… Não tem como te defender, colega. O fantasma da Frida Kahlo está se revirando no túmulo por sua causa agora. Isso também vale para marcas de roupa que tem um histórico racista (contratam apenas modelos brancas, por exemplo), mas usam o rosto dela para estampar camiseta e ganhar dinheiro. Não vamos esquecer que a Frida era anti-materialista e anti-imperialista.

É esse tipo de postura que a gente deve repensar, criticar, coibir. Ainda mais se você for uma pessoa latina branca. Sempre que a gente reproduz ou utiliza a imagem da Frida, é importante analisar se não estamos promovendo a fetichização da mulher mexicana, ou transformando sua identidade latina em uma caricatura, mesmo sem intenção.

Deficiências físicas e dor crônica

Imagino que a maioria das pessoas sabe que a Frida sofreu um acidente grave aos 18 anos, que a deixou com mobilidade reduzida, problemas de saúde e dores crônicas pelo resto da vida. Porém, um fato menos conhecido é que ela teve poliomielite na infância. Embora tenha se recuperado, a doença afetou sua perna direita: além dela ser mais fina que a esquerda, o seu pé ficou atrofiado. As saias longas que ela usava eram, também, para esconder essa diferença. Posteriormente, a sua perna seria amputada.

Em 1925, ela estava em um ônibus com o então noivo Alejandro Gómez quando foram vítimas de um acidente grave. Frida sofreu diversas fraturas e um ferimento profundo no  abdômen. Como resultado, depois de uma intensa e dolorosa recuperação, ela teve que usar coletes ortopédicos (alguns feito de gesso) a vida inteira. Frida se submeteu a várias cirurgias na coluna e na perna, e usava uma prótese que ela mesma desenvolveu. A exposição As aparências enganam mostra alguns dos coletes, as muletas e a prótese que – assim como a dor – faziam parte do cotidiano da pintora mexicana.


ree

Instalação da exposição As aparências enganam, sobre Frida Kahlo (Fonte)

Além de tudo, ela era possivelmente infértil – embora conseguisse engravidar, acabava sempre perdendo as crianças. Os médicos apontavam a causa desse problema como o acidente. Tanto a sua longa hospitalização quanto os abortos espontâneos e a idea da maternidade frustrada viriam a ser temas recorrentes em sua obra.


ree

O quadro Henry Ford Hospital, uma alegoria ao aborto que ela sofreu no hospital

Foi logo após o acidente que Frida começou a pintar. Durante a recuperação ela passou muito tempo na cama, e fez da arte a sua válvula de escape. Graças à natureza grave e crônica das suas lesões, nos anos que se seguiram a pintora teve que passar por outras hospitalizações, cirurgias complicadas e períodos de repouso. Ela continuava pintando mesmo nessas condições, e alguns registros fotográficos mostram que Frida trabalhava em suas obras ainda que não pudesse sair da cama.

Como eu já disse, tudo isso (as deficiências físicas, a dor crônica, a necessidade de estar no hospital com frequência) são aspectos cruciais da identidade da Frida Kahlo, que a gente não pode ignorar. Até porque elas fazem parte da sua arte e do seu legado.


ree

Fotografia que mostra Frida Kahlo pintando em sua cama, com mobilidade reduzida (Fonte)

Feminista, sim!

E para encerrar o post de hoje (que já está gigante), eu vou trazer mais uma reflexão pra vocês. Já vi pessoas criticando a Frida, dizendo que ela não devia ser ícone feminista, e usando a relação dela com o Rivera como argumento. Ou o fato dela ter se casado com um homem e não com uma mulher para deslegitimar a sua sexualidade. Na minha (nem sempre humilde) opinião, isso é uma grande besteira.

Primeiro, porque como eu disse e vou repetir, estar num relacionamento disfuncional  e até em uma relação abusiva não diminui ninguém. Sim, a gente tem que lutar contra a cultura que torna esses relacionamentos possíveis (e tão difíceis de se libertar), só que é preciso fazer isso sem culpar quem vive ou viveu esse problema. Feministas também podem entrar em uma relação assim. Acontece, e isso não as torna menos feministas – apenas torna o feminismo mais necessário. Depois, a gente tem que levar em conta a época, o contexto em que a Frida existiu. Talvez ela não pudesse se dizer feminista com todas as palavras que as mulheres podem usar agora, mas isso não apaga a trajetória dela. Uma trajetória de luta, de resistência, de desafio ao patriarcado, ao machismo e aos padrões estéticos. Mesmo que ela tivesse, por vezes, desempenhado um papel de “esposa tradicional” para o marido – até porque cozinhar e cuidar da casa também não torna ninguém menos feminista.

Meu ponto é o seguinte: é muito, muito válido a gente analisar a vida da Frida Kahlo de uma forma crítica, procurando entender em que momentos a sua existência ainda era marginalizada. Romper com os padrões, ser transgressor e desafiar a sociedade não é algo que livra a gente da opressão de uma hora para a outra (e, infelizmente, às vezes não livra a gente de jeito nenhum). Também é importante a gente pensar nos privilégios que ela tinha, como latina de pele clara e origem europeia, como alguém que pertencia a uma classe alta e teve acesso à educação, cultura e oportunidade desde cedo. Porém, nada disso invalida sua identidade como mulher mexicana, bissexual e feminista, com deficiências físicas, e orgulhosa de cada um desses aspectos.

Da minha parte, eu continuo fã, com uma enorme admiração e um respeito imenso pela Frida Kahlo e pelo legado que ela nos deixou.



 
 
 

Comentarios


11977652245

©2019 por LGBT+Arts. Orgulhosamente criado com Thuany Santana

bottom of page